terça-feira, 30 de março de 2010

Aquele dia.

Lembro-me perfeitamente daquele dia. Não é à toa; jamais conseguiria esquecê-lo, mesmo que me empenhasse em fazê-lo. E certamente aqueles momentos ficarão gravados pra sempre na minha memória.
Isso porque, mais do que uma lembrança de um fato, essa é uma lembrança de um sentimento. Na verdade, não exatamente de "um sentimento". Uso essa palavra querendo dizer que me recordo do que senti naquela hora. A sensação... a percepção de algo diferente de qualquer outra coisa que já havia experimentado. Como uma onda de calor, mas ao mesmo tempo cheia de gelada solidão; essa lembrança me remete ao preciso segundo em que me percebi como alheia a todos os outros, apesar de também perfeitamente aceita e acolhida.

Foi feito um elo, um canal através do qual muita coisa era transmitida, mas um canal que ninguém ousava utilizar intencionalmente. Um acesso ao estrangeiro, uma associação de cores.
Uma ponte que, diferentemente das que conhecemos, funcionou como agulha costurando uma margem do rio à outra, eliminando o espaço por que as águas passavam correndo. Os dois lados agora entrelaçados, tornaram-se uma única terra, misturada, confusa e indistinguível.
O curso delas foi interrompido. Não, foi interrompido apenas na superfície.
Agora, o fluxo se dava por dentro da terra, zil vezes mais intenso. A água, embora não fosse mais aquela transparente, era ainda pura. Realmente pura. Jamais fora tocada.
Jamais fora usada. Jamais fora explorada.
Aparentemente não foi nada de sobrenatural. Mas o fato de os solos diferentes se misturarem teve um grande efeito sobre todo o ecossistema característico de cada um. Engraçado como duas terras separadas por uma divisão tão insignificante, tão estreita, tão tênue podiam ser tão diferentes. Estavam sob o mesmo céu, cercadas pelo mesmo rio. Mas o cavocar delas mostraria as diferenças que tinham por dentro. Não, não eram tantas, mas uma tinha certas coisas que na outra faltavam, enquanto outra tinha coisas que na uma eram escassas.
Por isso foi tão marcante quando se associaram, visto que uma compensava a outra com suas características diferenciais. Parecia que aquilo era proposital, que alguma força exterior (a mãe natureza, quem sabe) trabalhava para que aquilo acontecesse. E foi muito bom para ambos os lados.
Me lembro perfeitamente como aquilo foi preenchedor, pareceu dar mais cor à paisagem antes desbotada. Não havia problemas com a paisagem anterior a esse evento, afinal, não era conhecido o resultado que aquela aliança era capaz de gerar. Não se sabia que era possível melhorar ou mudar alguma coisa radicalmente. Mas foi. As terras tornaram-se mais férteis por algum tempo, gerando mais e mais frutos. Também, como já disse, ganharam mais cor, mais brilho de sol e luz de luar.
Impossível escrever a sensação de ver tão bela cumplicidade se iniciando, tão bela amizade, tão fortalecedora união. Por isso digo que jamais me esquecerei daquele dia. Aquela penumbra alaranjada em meio ao verde, o calor fazendo suar as mãos, a água correndo como se desesperada e também confusa, sem direção.
Foi o dia em que o norte se perdeu, assim como a noção de tempo e a distância que separava margens acanhadas dum decrescente rio.


L

ps.: eu sei, ninguém entendeu. tanto faz, escrevi pra mim, escrevi pra registrar uma visão... um dia vou precisar disso. nao pergunte.

Uma análise poética da rotina de um alarme

O alarme da casa ao lado disparou. Talvez nada grave tenha realmente acontecido. Quem sabe ele não está querendo avisar que há algum defeito na sua estrutura ou instalação... Ou alguma coisa pode haver de fato provocado o seu humor, que já não deve ser dos melhores.
Não sem razão, né? Afinal, quem é que gostaria de ficar o tempo todo trabalhando para a segurança dos outros, sem poder sair do lugar ou abrir a boca sem gritar. E ainda por cima, quando ele trabalha, todo mundo reclama. Se foi por causa de alguma invasão, todos ficam nervosos e com medo de quem possa ter entrado. E se não foi, todos se irritam com o barulho.
Talvez ele já tenha planejado não funcionar só pra ver qual seria a reação das pessoas. Alguém poderia entrar sem ser percebido e fazer o que bem entendesse. Mas aí pensou que se isso acontecesse, também ouviria xingamentos por não ter sido eficiente em sua função.
Muito dura essa vida de alarme.
Agora prestando mais atenção, posso distinguir o som de passarinhos cantando ao mesmo tempo em que o alarme soa, incomodando o tímpano de quem passa nas proximidades. E então concluo que o mais provável é que o alarme tenha se irritado com a melodia dos passarinhos.
Talvez tenha libertado agora toda a indignação que já sentiu na vida enquanto ouvia a doce voz desses pequeninos voadores e só podia se contentar com a sua, estridente e estressante. Quem sabe não tenha guardado já uma grande mágoa por tamanha injustiça cometida contra os alarmes... por quê só os passarinhos podem ter essa voz?
Pobre alarme. Destinado a exercer pra sempre essa mesma função sem agradar aos ouvidos mais azarados que estiverem por perto eventualmente.
Afinal de contas, quem é que já começou um livro ou um conto dizendo "era um lindo dia de sol e o alarme do vizinho disparava com seu suave e agradável som"?